Um atleta profissional, reconhecido no mundo do esporte e muitíssimo bem remunerado, resolve se livrar de uma pedra no sapato, uma perturbação. Lá do topo da cadeia alimentar ele olha pra baixo e resolve fazer justiça frente a “uma puta sacanagem que armaram pra ele”. Ele paga amigos para dar fim, fazer sumir, eliminar a jovem mãe de seu filho. Filho que ele não quis, filho que geraria pensão. A vida dela é um detalhe. Mesmo. Detalhe ao qual nenhum dos envolvidos se ateve na busca de resolver o “problema” criado por ela.
Aqui na minha aldeia, há pouco mais de um mês, uma jovem mãe foi morta dentro de um hospital por seu companheiro. A história é o roteiro mais batido da vida real. Apanhava muito, era ameaçada. Fazia as denuncias, era ameaçada de novo. Com filhos em comum, pouca estrutura financeira e nenhuma estrutura emocional, deixava pra lá. Seguia apanhando. Resolveu enfim pela separação. Seguiram as ameaças. Citado, ele a procura no trabalho e a esfaqueia. Internada ela tem tempo de pedir a amigos que tomem conta dos filhos. Ela sabe que ele está decidido e que não há meio de detê-lo agora. Ele invade o hospital de madrugada e a mata com um tiro.
Três adolescentes (14, 15 anos), filhos de homens ricos e influentes se juntam, drogam e estupram uma colega de aula da mesma idade. A mãe de um deles chega a tempo de evitar que seja estrangulada. Durante mais ou menos um mês, tudo é mantido debaixo de um enorme tapete. Não se enganem. Não porque são meninos, mas porque são, desde o berço, homens e ricos.
A estas três histórias podemos juntar tantas outras que lembramos ainda. Histórias que ganharam vários capítulos e notoriedade na mídia. A menina sequestrada pelo namorado, a jornalista morta pelas costas e a mulher queimada pelo companheiro. Ou histórias que não chegam aos ouvidos de ninguém, iguais ou com elementos ainda mais chocantes.
Ouvi-las nos embrulha o estômago, nos causa um desconforto tamanho a ponto de mudarmos o canal ou o assunto. Ninguém concorda com atrocidades assim, não é mesmo? Ninguém faz por merecer tamanha violência, concorda? Ufa! Que bom que você concorda.
Porque há algo que nos faz sentir novamente a bofetada, há uma situação em que sentimos outra vez nossas roupas sendo arrancadas, sentimos a coronhada, o gosto do sangue morno e a humilhação.
Mas que atitude é essa que você, leitor(a) crítico(a), pode ter e que é poderosa a ponto de nos fazer viver de novo toda a dor? Respondo: A relativização da violência que sofremos.
Elencadas assim em sequência, fica mais fácil verificar a relação estreita que há entre as histórias acima. Mas na vida, as coisas não aparecem assim, não é verdade? Uma violência contra qualquer mulher está sempre inserida em algum contexto. Aí o ponto. Em regra, é o contexto que passa a ser esmiuçado.
Se um crime contra uma mulher envolve um celebridade endinheirada, esse passa a ser o foco. A sanha da moça em conseguir uma gorda pensão e/ou notoriedade e a mesquinhez do tal em “se sujar” pra não pagar uma quantia a ela.
Mas, e os outros problemas que possam envolver seu patrimônio, são resolvidos assim? Ele manda “dar fim” aos amigos que se aproveitam de sua fama e plata? Ou este é um tratamento reservado apenas aos brinquedos vivos que coleciona?
No caso da violência doméstica de enredo surrado a relativização é regra: “É complicado falar dessas coisas porque a gente não sabe como eles viviam, como era a relação deles”.
Se um infeliz rouba o CD do carro não é complicado falar sobre, porque afinal, eu sei tudo sobre a vida dele. Não há o que relativizar. Eu comprei o CD, paguei, e já é o terceiro. Se eu pudesse livrava o mundo daquele estorvinho, mas como sou um cidadão pagador de impostos o mínimo que espero é que o Estado faça isso por mim.
Mas um casal, sabe como é... Eles tem lá o jeito deles de viver.
Felizmente (?) o debate sobre a imputabilidade penal dos adolescentes tem sido tratado com mais seriedade do que gostaria a mídia comercial. Caso contrário, assistiríamos no episódio dos três adolescentes ricos e seus pais influentes uma ironia bastante interessante.
Os elementos deste caso em específico são riquíssimos para análise. Os vários pesos e várias medidas que nossa sociedade utiliza para condenar e absolver é o principal deles, penso.
Mas não esqueçamos nem por um minuto que mais uma vez foi uma mulher, uma menina a vítima. Não é coincidência. Fiquem atentos. Talvez não digam com todas as letras. Mas “apenas para o debate” comentarão que “hoje essas meninas amadurecem muito cedo. Com doze, treze anos já são tão provocantes. Não que isso justifique, claro. Mas É um elemento”.
Não. Não é um elemento válido. E minha educação não me permite dizer-lhes o que poderia ser feito com ele.
Ora, o amadurecimento sexual precoce de nossas filhas e o “mau uso” que, adultas, passamos (e passam) a fazer do nosso corpo e da nossa sexualidade, é parte dessa mesma violência que resistimos tanto em enxergar.
E por falar nas nossas filhas, peguem-nas no colo. Não esqueçam de fazê-las sentir amadas e respeitadas, desde agora. Não deixem de dizer a elas que todas as capas de revista são uma grande bobagem. Que sua beleza não precisa (nem deve) ser medida. Não as criem para agradar a ninguém. Não as criem para concordar, porque algumas coisas são muito difíceis de desaprender depois dos trinta. Orientem exaustivamente, e se puderem dando o exemplo, que a indelicadeza é o mal do século mas que conviver com gente grosseira e desrespeitosa é uma opção que não precisamos fazer. Esclareça que não é normal o seu “grande amor” perder a cabeça, ofendê-la ou diminuí-la gravemente, mesmo que apenas com palavras.
Acreditem, o que mais dói é que todos nós relativizamos demais. Por conveniência, amor, por obediência, por medo, mas sobretudo por aprendizado mesmo.
Publicado originalmente aqui.
3 comentários:
Amiga, na boa.
Isso é falta de Deus no coração...
Amor e humildade.
Abraço
Abraço grande, Dinho.
Parabéns, gostei muito do texto e concordo deveras com ele!!
Beijos cabeluda...Saudadona Masterbig de você!
Postar um comentário